Crónicas

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A Luz que me fez mãe

A Luz que me fez mãe

Os círculos e ciclos do amor maternal tão bem resumidos pela minha avó Luz e continuados na minha filha Luz. São estas luzes que me alumiam o caminho para onde a roda da vida me empurra todos os dias.

Sonhei com a minha avó no dia em que escrevo este texto. Não foi um acaso. A avó Luz dizia que a vida era uma roda. Brincávamos com ela, porque dizia muitas coisas assim, aparentemente simples e lineares, mas que, se pensássemos bem, eram pequenas cápsulas de saber ditas como só quem já viveu muito poderia dizer de forma tão esclarecida.
Antes nem pensava como estas coisas se ligavam, isto de ser mãe, avó e filha. Uma irmandade no feminino. Um ciclo que se perpetua por gerações. Uma roda. Primeiro filha, depois, mãe, depois, avó. Agora, a minha avó morreu e a minha mãe tornou-se avó. Eu continuo filha, mas ganhei o cargo de mãe e a minha filha começou agora esta viagem.
Não sei se vai querer ser mãe, é lá com ela. Eu também nunca sonhei com essas coisas de casar e ter filhos. Eu sonhava era com viver, viver tudo o que pudesse, conhecer livros, sítios, pessoas, experimentar emoções, sensações, pensar, criar. Em oposição à vida que a minha avó teve, a cuidar da neta e do marido e da filha e da família toda. Nunca andou de avião, não tinha a carta, mal sabia escrever, não lia, não ouvia música, entretinha-se a costurar e a ver televisão.
Eu queria ter mundo e tive-o. Queria criar mundos e criei-os. No fim, acabo por ouvir o que aquela mulher que nunca teve mundo e nunca criou mundo (pensava eu), dizia e percebo que ela formulou na perfeição um pensamento complexo e cheio de mundividência.
O Dia da Mãe passou a ser vivido a dois papéis: o de filha e o de mãe. Eu vim a este mundo para fazer da Arlete uma mãe e a minha filha Luz veio ao mundo para fazer de mim mãe dela.
Levo muito a sério este papel que a minha filha me entregou. Sei que a roda avança, porque é a sua natureza avançar e não quero perder pitada. Todas as minudências: o cortar as unhas, o trocar as fraldas, o limpar o bolçado, o dar-lhe de comer, o comprar-lhe as frutas e os legumes para as sopas e os purés. Todos os gestos de ternura: o adormecê-la nos braços, o consolá-la porque se aleijou, porque não consegue fazer algo, ou porque simplesmente está rabugenta, o arrastar o colchão de campismo, o edredão e a almofada para o quarto dela e dormir ao lado do berço, porque naquela noite só dorme se estiver de mão dada comigo, o brincar com ela, o rirmos juntas a bandeiras despregadas com as parvoíces que inventamos, o passear e vê-la apreender o mundo. Todas as lágrimas de tristeza, cansaço e raiva: porque não sei o que fazer para aliviar a sua dor, porque não sei como a fazer comer mais do que duas colheres de sopa, porque depois de uma hora a adormecê-la, o gato mia, ou o chão chia e ela acorda outra vez.
Vou ter saudades disto tudo, como tenho saudades da minha avó e do tempo em que era neta. Já não sou neta e um dia vou deixar de ser filha. Eu oponho-me fortemente a isto, mas o que fazer? A vida é uma roda. Uma roda que não pára, acrescento. Não faço ideia onde me irá levar esta roda, ninguém sabe, nem ninguém a controla totalmente. Mas o que levo comigo na viagem sou eu que escolho: muita Luz, para me alumiar o caminho.

ANA BACALHAU
Músico e compositor

foto:© Frederico Martins

 

Publicado em 5 Mai. 2018 às 14:41

Os círculos e ciclos do amor maternal tão bem resumidos pela minha avó Luz e continuados na minha filha Luz. São estas luzes que me alumiam o caminho para onde a roda da vida me empurra todos os dias.

Sonhei com a minha avó no dia em que escrevo este texto. Não foi um acaso. A avó Luz dizia que a vida era uma roda. Brincávamos com ela, porque dizia muitas coisas assim, aparentemente simples e lineares, mas que, se pensássemos bem, eram pequenas cápsulas de saber ditas como só quem já viveu muito poderia dizer de forma tão esclarecida.
Antes nem pensava como estas coisas se ligavam, isto de ser mãe, avó e filha. Uma irmandade no feminino. Um ciclo que se perpetua por gerações. Uma roda. Primeiro filha, depois, mãe, depois, avó. Agora, a minha avó morreu e a minha mãe tornou-se avó. Eu continuo filha, mas ganhei o cargo de mãe e a minha filha começou agora esta viagem.
Não sei se vai querer ser mãe, é lá com ela. Eu também nunca sonhei com essas coisas de casar e ter filhos. Eu sonhava era com viver, viver tudo o que pudesse, conhecer livros, sítios, pessoas, experimentar emoções, sensações, pensar, criar. Em oposição à vida que a minha avó teve, a cuidar da neta e do marido e da filha e da família toda. Nunca andou de avião, não tinha a carta, mal sabia escrever, não lia, não ouvia música, entretinha-se a costurar e a ver televisão.
Eu queria ter mundo e tive-o. Queria criar mundos e criei-os. No fim, acabo por ouvir o que aquela mulher que nunca teve mundo e nunca criou mundo (pensava eu), dizia e percebo que ela formulou na perfeição um pensamento complexo e cheio de mundividência.
O Dia da Mãe passou a ser vivido a dois papéis: o de filha e o de mãe. Eu vim a este mundo para fazer da Arlete uma mãe e a minha filha Luz veio ao mundo para fazer de mim mãe dela.
Levo muito a sério este papel que a minha filha me entregou. Sei que a roda avança, porque é a sua natureza avançar e não quero perder pitada. Todas as minudências: o cortar as unhas, o trocar as fraldas, o limpar o bolçado, o dar-lhe de comer, o comprar-lhe as frutas e os legumes para as sopas e os purés. Todos os gestos de ternura: o adormecê-la nos braços, o consolá-la porque se aleijou, porque não consegue fazer algo, ou porque simplesmente está rabugenta, o arrastar o colchão de campismo, o edredão e a almofada para o quarto dela e dormir ao lado do berço, porque naquela noite só dorme se estiver de mão dada comigo, o brincar com ela, o rirmos juntas a bandeiras despregadas com as parvoíces que inventamos, o passear e vê-la apreender o mundo. Todas as lágrimas de tristeza, cansaço e raiva: porque não sei o que fazer para aliviar a sua dor, porque não sei como a fazer comer mais do que duas colheres de sopa, porque depois de uma hora a adormecê-la, o gato mia, ou o chão chia e ela acorda outra vez.
Vou ter saudades disto tudo, como tenho saudades da minha avó e do tempo em que era neta. Já não sou neta e um dia vou deixar de ser filha. Eu oponho-me fortemente a isto, mas o que fazer? A vida é uma roda. Uma roda que não pára, acrescento. Não faço ideia onde me irá levar esta roda, ninguém sabe, nem ninguém a controla totalmente. Mas o que levo comigo na viagem sou eu que escolho: muita Luz, para me alumiar o caminho.

ANA BACALHAU
Músico e compositor

foto:© Frederico Martins

 

14:41