Atual

Atual

Voltar atrás

UMA VEZ POR DIA, NO MÍNIMO

UMA VEZ POR DIA, NO MÍNIMO

O futuro dos nossos filhos não depende de nós (e do nosso passado), por muito que o queiramos. Mas há coisas tão simples como fundamentais que podemos e devemos fazer.

Entre os vários sketches memoráveis dos Monty Python há um que me assalta os pensamentos com alguma frequência: “Four Yorkshiremen”, interpretado ao vivo no Hollywood Bowl, onde vestem a pele de quatro homens abastados que, bebendo e fumando charutos, trocam memórias de infância numa ridícula competição para ver quem teve o passado mais difícil. Dos incontornáveis e condescendentes clichês (“éramos pobres, mas felizes”) passam a um non-sense hiperbolizado (“na minha família éramos cento e cinquenta a dormir numa caixa de cartão, no meio da estrada”), para acabar a conversa com a sentença “agora tentem contar isto aos miúdos de hoje em dia a ver se eles acreditam!”. O sketch funciona porque para além do génio dos seus criadores e intérpretes, de uma ou outra maneira, todos nós, seja qual for a nossa geração, nos podemos identificar com esse tipo de discurso. O meu pai contou-me algumas histórias da sua altura, na minha altura. Nada de tão sensacional como os Monty Python, obviamente, mas dramático o suficiente para me tentar fazer sentir um sortudo privilegiado que não sabia dar valor ao que tinha. Na maior parte das vezes, como não me conseguia relacionar com aquilo que ouvia, as histórias não me tocavam a um nível verdadeiramente emocional. Claro que a piada agora é que dou por mim a ter, eu próprio, a tal conversa que começa por quando eu tinha a tua idade. “Quando eu tinha a tua idade, não havia internet nem telemóveis, não havia Netflix nem canais de desenhos animados. Brincávamos na rua o tempo todo”.
Neste momento, nós, pais, andamos bastante preocupados com os perigos diretos, implicações e efeitos secundários das redes, com a possibilidade de estarmos a criar filhos com poucas capacidades sociais (meu Deus, que ironia) e outras ferramentas para a vida adulta. A minha filha mais velha ainda está no ensino básico, mas, à semelhança de tantas outras áreas da minha vida, também na paternidade eu sofro um pouco em antecipação.
As minhas filhas hão de se safar. Como eu me safei e os meus pais antes de mim. Vou sofrer no processo, isso é certo. Que pai não terá sofrido? Mas hão de se safar. Tenho que estar atento e ter uma disponibilidade que os meus pais nunca tiveram comigo (não os censuro por isso, como poderia fazê-lo? Não a tiveram porque a missão deles era só uma: trabalhar para os filhos poderem ter aquilo que eles nunca tiveram). As minhas filhas hão de se safar e isso, feliz ou infelizmente, não depende só de mim. Até onde depender, contem comigo. Disto tenho a certeza: há coisas dos nossos pais que nos ficam da infância para a vida. Como o facto de a minha mãe me dizer constantemente que me amava. O meu pai fê-lo uma vez, muito depois de me tornar adulto. Outros tempos, aqueles em que ele cresceu, com outras mentalidades. A um homem não ficava bem a demonstração de afeto e amor aos seus filhos, pública ou privadamente. Essa era uma “tarefa” da mulher. No que a mim diz respeito, digo a cada uma das minhas filhas que as amo uma vez por dia, no mínimo.

 

Carlão
Letrista e Vocalista

Publicado em 19 Mar. 2019 às 11:00

O futuro dos nossos filhos não depende de nós (e do nosso passado), por muito que o queiramos. Mas há coisas tão simples como fundamentais que podemos e devemos fazer.

Entre os vários sketches memoráveis dos Monty Python há um que me assalta os pensamentos com alguma frequência: “Four Yorkshiremen”, interpretado ao vivo no Hollywood Bowl, onde vestem a pele de quatro homens abastados que, bebendo e fumando charutos, trocam memórias de infância numa ridícula competição para ver quem teve o passado mais difícil. Dos incontornáveis e condescendentes clichês (“éramos pobres, mas felizes”) passam a um non-sense hiperbolizado (“na minha família éramos cento e cinquenta a dormir numa caixa de cartão, no meio da estrada”), para acabar a conversa com a sentença “agora tentem contar isto aos miúdos de hoje em dia a ver se eles acreditam!”. O sketch funciona porque para além do génio dos seus criadores e intérpretes, de uma ou outra maneira, todos nós, seja qual for a nossa geração, nos podemos identificar com esse tipo de discurso. O meu pai contou-me algumas histórias da sua altura, na minha altura. Nada de tão sensacional como os Monty Python, obviamente, mas dramático o suficiente para me tentar fazer sentir um sortudo privilegiado que não sabia dar valor ao que tinha. Na maior parte das vezes, como não me conseguia relacionar com aquilo que ouvia, as histórias não me tocavam a um nível verdadeiramente emocional. Claro que a piada agora é que dou por mim a ter, eu próprio, a tal conversa que começa por quando eu tinha a tua idade. “Quando eu tinha a tua idade, não havia internet nem telemóveis, não havia Netflix nem canais de desenhos animados. Brincávamos na rua o tempo todo”.
Neste momento, nós, pais, andamos bastante preocupados com os perigos diretos, implicações e efeitos secundários das redes, com a possibilidade de estarmos a criar filhos com poucas capacidades sociais (meu Deus, que ironia) e outras ferramentas para a vida adulta. A minha filha mais velha ainda está no ensino básico, mas, à semelhança de tantas outras áreas da minha vida, também na paternidade eu sofro um pouco em antecipação.
As minhas filhas hão de se safar. Como eu me safei e os meus pais antes de mim. Vou sofrer no processo, isso é certo. Que pai não terá sofrido? Mas hão de se safar. Tenho que estar atento e ter uma disponibilidade que os meus pais nunca tiveram comigo (não os censuro por isso, como poderia fazê-lo? Não a tiveram porque a missão deles era só uma: trabalhar para os filhos poderem ter aquilo que eles nunca tiveram). As minhas filhas hão de se safar e isso, feliz ou infelizmente, não depende só de mim. Até onde depender, contem comigo. Disto tenho a certeza: há coisas dos nossos pais que nos ficam da infância para a vida. Como o facto de a minha mãe me dizer constantemente que me amava. O meu pai fê-lo uma vez, muito depois de me tornar adulto. Outros tempos, aqueles em que ele cresceu, com outras mentalidades. A um homem não ficava bem a demonstração de afeto e amor aos seus filhos, pública ou privadamente. Essa era uma “tarefa” da mulher. No que a mim diz respeito, digo a cada uma das minhas filhas que as amo uma vez por dia, no mínimo.

 

Carlão
Letrista e Vocalista

11:00